sábado, 7 de abril de 2012

CAMELOS TAMBÉM CHORAM (2003)


Aos camelos, Deus deu chifres como recompensa pelo seu bom coração. Também por terem um bom coração, os camelos atenderam ao pedido dos veados e emprestaram seus chifres a eles, que desapareceram rumo ao Ocidente e nunca mais os trouxeram de volta. Por esse motivo, os camelos até hoje aguardam a devolução de seus ornamentos com um olhar esperançoso para o horizonte.

Essa história nos é contada em plano médio cinematográfico por um ancião de uma aldeia do deserto de Góbi, Mongólia, lugar onde vive da criação de camelos e cabras com sua família; o filme chama-se Camelos também choram (Alemanha/Mongólia, 2003), documentário dirigido por Byambasuren Davaa e Luigi Falorni. A interpretação do ancião para o olhar do camelo nos diz bastante sobre o tom dos próximos minutos de filme: as lendas são formas de significar o mundo ao redor e podem fornecer explicações plausíveis e verdadeiras para as sociedades que as constroem e que, a partir delas, se posicionam nesse mundo.


A primavera no deserto de Góbi traz o nascimento de um rebanho de camelos. O primeiro proto (como os nativos daquele lugar chamam os camelos filhotes) do ano é abençoado com uma espécie de coleira trançada com lã de camelo, que é presa entre sua cabeça e pescoço. Esse ritual abençoa o recém-nascido e faz com que suas bossas – onde armazenam substâncias nutritivas e líquido para que não desidratem no deserto - cresçam saudáveis e seus cascos fortes. Um dos animais tem um parto doloroso, sendo que após dois dias e muito esforço nasce um pequeno camelo branco. O proto (Botok) é rejeitado prontamente por sua mãe (Ingen Temee), que não lhe dá atenção, nem leite - esse drama vai permear todo o percurso do filme. A angústia, a tristeza e a maternidade, considerados sentimentos eminentemente humanos, são para os sujeitos imbricados nessa situação atributos também dos camelos, animais que realmente choram. Temos, assim, uma espécie de personificação daqueles animais, que, de certa forma, nos tornará sensíveis à leitura do filme. Talvez a dicotomia ocidental entre natureza/cultura, animal/humano não caiba de forma tão fechada neste nicho. Aqui cabe, no entanto, a pergunta: quais seriam os motivos de rejeição ao filhote, seu albinismo ou o sofrimento do parto (e uma possível depressão pós-parto)?

É possível que os cineastas Davaa e Falorni não cedam apenas a uma resposta e admitam, através de seus “personagens”, as duas opções. O bloqueio materno em manifestar cuidado pelo filhote pode ter sido disparado por fatores relacionados às complicações do próprio parto. Nesse momento, a maternidade coube a Odgoo, jovem mãe da comunidade, que tenta por inúmeras vezes uma aproximação entre os dois animais e que, nesse meio tempo, tira o leite da mãe-camelo e dá de mamar ao filhote. Mas essa manobra não era suficiente para que o proto pudesse sentir-se inteiramente acolhido e capaz de “confiar” em suas próprias possibilidades de desenvolvimento.

Se nos propusermos a estabelecer uma relação entre sentimentos humanos e o comportamento dos animais, podemos falar também sobre uma possível expectativa dessa mãe-camelo sobre seu filhote, que nasceu diferente dela - albino. Abre-se, então, uma possibilidade de reflexão sobre o outro, sobre a diferença. E abre-se mais ainda um jogo de significações em que as diferenças, o conflito e a aceitação entre gerações - não somente entre camelos - pode ser pensada. Acredito ser essa a principal discussão trazida pelo documentário.

A solução encontrada pela família mongol diante desse evento vem de sua tradição. Os mais velhos da família acreditam que apenas o comprimento do ritual Hoos pode interceder sobre essa situação. Enviam, então, seus dois garotos, Dude e Ugna, em uma viagem pelo deserto até uma cidade próxima, onde encontrarão um violinista para o ritual em que os laços entre mãe-camelo e filhote serão novamente conectados. A partir daí tem início, de fato, a discussão a que o documentário se propõe.

O filme de Davaa e Falorni é uma lupa sobre uma determinada comunidade local, mas diz muito sobre o global. A viagem que leva os meninos à cidade flagra o instante do “choque” (para nós espectadores?) entre duas maneiras distintas de vida em lugares tão vizinhos. A surpresa experimentada pelo menino mais novo, Ugna, ao se deparar com aquilo que não era familiar - a televisão, os videogames e todas as “parafernálias” tecnológicas – é exemplar desse choque. Sabemos que as pessoas têm participação diferenciada dentro de uma determinada cultura, dependendo de fatores como faixa etária, posição social, gênero, etc. Para o pequeno Ugna a novidade não parece ter sido enxergada como algo desestruturante, que ameaçasse sua tradição; pelo contrário, veio revestida pelo olhar admirado e desejoso. Mas, talvez, para o ancião do começo da história, seu avô, esse mesmo contato tenha uma assimilação diferenciada, por se tratar de alguém mais velho, mais imerso naquela tradição cultural. Ao mesmo tempo, ao passo que o proto sente pela primeira vez o gosto do leite e o gosto do mundo, Ugna experimenta pela primeira vez o barulho da cidade e o barulho das imagens animadas.


Mas o espanto não se circunscreve apenas àquele que chega a um lugar novo; a comunidade que o recebe também o estranha, o segue com o olhar curioso de quem examina o não familiar. A cena em que os dois meninos entram numa loja para comprar pilhas pode ser tomada como imagem desse momento de perícia. O outro, nesse sentido, também é confrontado com o seu avesso, com o que não lhe é familiar – as vestes dos meninos, por exemplo, tão diferentes das vestes dos habitantes daquela cidade.


Camelos... nos coloca frente às interseções e disparidades específicas dessas duas comunidades que exercem seu contato com o mundo de forma tão própria. Enquanto numa, os sentimentos comunitários e de relação básica com a natureza ainda estão presentes; noutra, fazem-se presentes as práticas mais individualizadas, assim como, as experiências mediadas pela tecnologia visual – televisão, videogame, etc.


Uma outra questão interessante é a construção da narrativa, que nos convida à reflexão sobre a escrita cinematográfica, já que não fica clara (nem tão pouco deveria) a opção dos diretores pelo documentário ou pela ficção. Assim como a lenda, Camelos também choram fica ali na interseção entre o real e o olhar que constrói a realidade, revelando-se como um discurso sobre o outro. Essa forma de escritura do filme me remete aos documentários do cineasta Robert Flaherty, principalmente Nanook, o Esquimó (1922), em que o diretor acompanhou durante um ano a vida de uma família de esquimós no Ártico. O filme de Flaherty chegou a suscitar na época críticas sobre situações claramente encenadas para as câmeras, e a discussão sobre a especificidade da escrita no documentário e na ficção cinematográfica - existe a possibilidade de se captar uma realidade sem de alguma forma alterá-la? Como cinema é linguagem, talvez a resposta seja não.

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