Certo, seria de bom tom falar em supressão de uma linguagem em relação a outra? Cinema é linguagem?
Ok, vamos ao dicionário ver o que significa a palavra SUPRIMIR. Sinônimos: cortar, riscar; omitir, não mencionar; anular, cassar, abolir, extinguir; impedir de aparecer, de ser publicado. Pegando esse gancho, a gente pode inferir o quê, que se um filme for literatura anularemos todo e qualquer traço que o caracteriza como filme, como outra linguagem, a qual não surgiu assim de uma hora pra outra, mas foi (e é) resultado de um processo histórico. Cinema é linguagem! Possui seus próprios meios de comunicar ao leitor/espectador.
A literatura realiza "imagens mentais", o cinema "materializa" em imagens e sons (ou silêncio) o que foi organizado no roteiro e na percepção do diretor, ou da produção. As discussões difíceis, acaloradas e sem fim sobre a validade e a adequação das adaptações de livros para o cinema levam a uma oposição literatura x cinema, que dão a falsa idéia de que a literatura possa ser substituidapelo cinema ou vice-versa.
Cinema e vídeo não são literatura - são linguagens diferentes do texto escrito. Vc nunca irá ver um filme que foi baseado em um livro exatamente igual a ele, ou como vc o imaginou. Isso é o que torna as adaptações frustrantes e os leitores dos livros tão críticos em relação ao filme. Um filme não é um livro, UM FILME É UM FILME. São linguagens diferentes, tempos diferentes de apreensão, formas de emissão, recepção e fruição particulares de cada um dos meios. Quer ver um filme fiel a um livro? Vai ter que ficar mais de uma semana vendo o filme! E vc num vai ver atores e trilha sonora desfilando pela tela, não, vai ficar vendo as páginas que foram filmadas. Não seria entediante?
Cinema é tempo, é síntese (sem desprezar a sua complexidade enquanto narrativa e fábula). Mas cinema envolve outros fatores extrafílmicos, o dinheiro, por exemplo, é um deles. O dinheiro move a indústria cinematográfica e para a indústria cinematográfica a máxima "tempo é dinheiro" se aplica. Poderia até afirmar que, de certa forma, a máxima vale tb para o cinema de vanguarda e qualquer outra alcunha que se dê ao cinema. Mas não é esse o objetivo do texto. Estamos falando aqui do chamado Cinema Narrativo, aquele cinema que conta uma história, que tem como características de base o "corte limpo" sem emenda, em que "as substituições de imagem obedecem a uma cadeia de motivações psicológicas" (XAVIER, 1977, p.25)*, uqe tem como principal fundador e fomentador Hollywood. Para esse cinema, a síntese envolve dinheiro e dinâmica - e conquista de público. Mas além disso, podemos combinar que ninguém iria conseguir ficar numa sala de cinema assistindo páginas de livro passando na tela. Fato!
De vez em quando ouço uns comentários sobre essa relação conturbada que impõem a essas duas linguagens. Outro dia ouvi de um colega que o filme O Cálice de Fogo (da saga de Harry Potter) não é fiel ao livro. Ele me exemplificou com a cena de Harry Potter recebendo APENAS uma carta do Ministério da Magia, que lhe informava que estava sendo expulso de Hogwarts por ter usado, pela 2ª vez, magia na frente dos trouxas. Gente, não há perda de sentido algum no percurso da história. No filme, Harry recebe UMA única carta; no livro são VÁRIAS as cartas que ele recebe. A quantidade de cartas não altera de forma alguma a essência que se quis dar à cena ou ao filme como um todo. Foi preciso fazer isso porque seria dispendioso gastar dinheiro com horas de filmagem, ilha de edição, computação gráfica, equipe, atores, etc., além do quê, essa economia de cena dá dinâmica à história. Uma cena demora muito mais tempo pra ser produzida do que o que o tempo diegético em tela mostra. Tempo, em cinema, além de dinâmica e linguagem, quer dizer dinheiro.
Por um outro viés, poderíamos fazer uma comparação com o roteiro, que parece ser o que está mais próximo da coisa escrita, da literatura. Erro! O roteiro utiliza de um formato e uma linguagem completamente diferente da literatura... não é um livro. O livro é outra coisa. No roteiro, às vezes o cara faz não sei quantas revisões, convida gente diferente pra ajudá-lo. É um trabalho coletivo, enquanto a literatura me parece ser um trabalho solitário (claro que podem haver suas excessões). Quando se vai pra um set de filmagem a coisa não muda de cara, vai ter palpite do diretor, do maquiador, do fotógrafo... aprende-se a trabalhar em equipe.
Me parece mais sensato acreditar que uma linguagem não pode submeter outra. Podemos conversar aqui e falar de interação, relação entre ambas, mas não de superioridade. O livro, a literatura, trabalha com palavras, e tem no material físico papel seu meio de transmissão e difusão (hoje há os novos meios de difusão da literatura, a web, os audiobooks, por exemplo); o filme é imagem, som e uma série de outros elementos organizados, e tem na impressão das imagens em um filme fotosenssível o seu meio de transmissão. Só esse fato já garante um leque enorme de diferenças entre as duas linguagens.
E por que pra muitos o filme tem que ser fiel ao livro que o originou? Uma adaptação não é uma adaptação? O próprio nome diz: ADAPTAÇÃO. Vc vai pegar um referencial e o adaptar a outro tipo de suporte, ora. É simples!
Cada leitor vai ver "um filme" na cabeça quando lê o livro, imagina a cara dos personagens, o lugar, a cena. Dai tem um dia que uma pessoa resolve adaptar o livro para o cinema. Ele é o diretor e vai ter que chamar um ator pra fazer o papel do mocinho e muita gente vai dizer que não é assim que imaginava o personagem. Rá! Foi uma escolha de quem estava à frente da direção, da produção, assim como é uma escolha imaginar o personagem ao ler um livro.
Palavra e imagem: duas linguagens que geram códigos distintos, que expressam visões de mundo de maneira diferente
* XAVIER, Ismail. O discurso cinematográfico: a opacidade e a transparência. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977.
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