domingo, 23 de maio de 2010

tarde suja


o vento nas bandeirolas soava chuvisco na rua. as portas batiam e as janelas assobiavam - típico dia de céu nublado, cinza azulado, onde mais tarde, à noite, os gatos são pardos e a lua não dá o ar de sua graça.
mas era tarde e a tarde era suja - se insinuava um pretexto pra justificar sua solidão. a tarde também pedia cama. quase ninguém sai num tempo desses.

- água! todo mundo tem medo de água.

de quebra, um sentido a sua rotina: procurou livros, ensaiou falas, desenhou pavão. os dias de chuva nos deixam mais reflexivos, pensou, nada como uma boa água precipitando pra deixar o olhar dilatado, em vão, pensando ferrugem - passado.

as paredes úmidas e geladas deram vontade de encostar e suprir a falta de um corpo quente. um travesseiro entre as pernas, um dedo chamuscando a vela. (não, não tem vela na história. corta!)
as paredes úmidas deram vontade de encostar e suprir a falta de um corpo quente. um travesseiro entre as pernas e um punhado de lençóis na cama. aquele fim de outono era o mais vazio frio de outono que já fizera em seu coração.
levantou e foi até a cozinha. passou pelo armário vidrado - lhe refletia. parou no seu rosto. a boca ria, os dentes sorriam e os olhos enrrugavam - era parte dos exercícios na frente do espelho. queria que seus olhos pudessem ver como tudo estava bem, apesar da chuva.

Tenho fases, como a lua
Fases de andar escondida,
fases de vir para a rua...
Perdição da minha vida!
Perdição da vida minha!
Tenho fases de ser tua,
tenho outras de ser sozinha.*

numa confusão tamanha, metido numa solidão de entranhas: tantas estranhas sensações - nada poderia ser feito se não se dissesse NÃO. sabia que era anormal, como todos o são. mas também sabia não ser patologia o que deveras sentia.

- mania minha de enquadrar tudo. toc, fobia, es-quizo-frenia. TERAPIA!

mas teria que ser de graça. não pagaria a alguém para que lhe ouvisse falar. achava absurda a idéia e abortou-a rapidamente. finalmente (e pelo menos) pensou que era preciso mais que a si mesmo pra se encontrar. achou que já passara da hora de morar junto, numa filosofia. largou o pretexto da chuva ou só do texto pra contar seus desejos.


* trecho da poesia Lua Adversa, de Cecília Meireles, encontrada aqui
** Mulher Pavão, ilustração de maria valentina

Um comentário:

Larissa Santiago disse...

Cecília é incrível.
ganhei um livro com as melhores dela.

beijos