Wong Kar Wai, Hong Kong/China/França, 2007.
para aqueles que acreditam no cinema como uma arte de sensações, vale a pena sentir água na boca com my blueberry nights.
frutas vermelhas sendo banhadas por uma calda leitosa aparecem na tela, despertando o paladar dos distraidos. corte seco! uma mulher entra irritada num bar.
my blueberry nights, do diretor chinês Wong Kar Wai (de sucessos como 2046 e Amor a flor da pele) provocou uma experiência prazerosa e aconchegante, permeada pela sensação intimista, por vezes gélida e úmida, com o local onde as histórias se passavam.
Jeremy (Jude Law) é o dono de um bar-cafeteria e está acostumado a presenciar inícios e términos de histórias amorosas dos clientes que por ali passam. uma noite ele recebe a visita de Elizabeth (Norah Jones), uma jovem mulher de coração partido. após uma grande decepção amorosa, a jovem passa a frequentar a lanchonete de Jeremy, encontrando nele um confidente com quem passa a conversar madrugada adentro, noite após noite. Elizabeth, confusa e determinada a se livrar do passado, parte em uma viagem sem rumo pelo interior dos EUA. desta tomada de posição surgirão personagens que ajudarão ela a compreender a si mesma e os caminhos tortuosos pelo qual o amor percorre: um policial (David Strathairn) que não consegue abandonar a ex-mulher (Natalie Portman) e uma sexy jogadora de cartas (Rachel Weisz). enquanto se envolve na vida destas pessoas, Elizabeth vai curando suas próprias feridas, para tentar assim recomeçar sua vida.
my blueberry nights foi o filme de abertura do 60º Festival de Cannes em 2007 e é protagonizado pela cantora Norah Jones. do Festival, o filme de Kar Wai não levou nada, diferente do que aconteceu com seu Felizes Juntos (Happy Together, 1997) que foi premiado no festival, assim como Amor à Flor da Pele (In The Mood For Love), em 2000. na categoria da qual estava concorrendo em 2007, disputava com o romeno 4 Meses, 3 Semanas e 2 Dias (4 luni, 3 saptamini si 2 zile), do diretor Cristian Mungiu. difícil disputa.
a primeira experiência de Norah Jones como atriz não deixa a desejar. na atuação, embora haja momentos em que sua mis-en-scène soa artificial, como no momento em que grita de raiva dentro do bar ao entregar as chaves para Jeremy pedindo-lhe que as entregasse ao ex e na hora em que sua personagem está fumando do lado de fora do bar com Jeremy – na primeira cena seu grito não soa revoltante, na segunda aquela tragada não aconteceu. ela tem uma passagem que surpreende no filme, dando à interpretação o tom necessário nesse trabalho poético do diretor e também co-roteirista (Wong Kar-Wai e Lawrence Block), além de estar belíssima. o elenco coadjuvante com presença forte ajuda bastante nessa saga.
a busca constante do diretor pela intimidade, pelos detalhes normalmente esquecidos das situações, cria um clima intimista em torno da história. a maioria das cenas são rodadas em locais fechados, como bares, restaurantes e cassinos, onde os olhos atentos de Elizabeth observam as angústias alheias, parecendo tirar dali algo pra si. talvez essas experiências tornem-se uma espécie de catarse para a personagem, na medida em que o resultado de sua fuga de Nova Iorque acaba por aproximá-la mais de si mesma, fazendo-a buscar nas experiências que presencia um espelho para sua renovação e perspectiva de novos horizontes para sua vida: um novo amor, por exemplo. em Memphis, Elizabeth vira garçonete e assiste à decadência de um policial alcoólatra frente à ex-mulher. seguindo viagem, ela vai para o Ely, no Estado de Nevada, onde encontra uma jogadora de pôquer profissional. os personagens são tipos incorrigíveis, literalmente condenados a amar, uma das marcas registradas do diretor.
a história centralizada em Nova Iorque interage com outras histórias, pelo interior dos EUA. o filme é um road movie tendo por fio condutor dos personagens centrais, apenas as confidencias através de cartões postais.
a descoberta da América pode ser lida como uma metáfora do autoconhecimento objetivado pela jovem Elizabeth. aliás, este filme é um conjunto de pistas poéticas: um pote de chaves à espera de fechaduras para serem abertas; uma jogadora profissional que se gaba de saber “ler” as pessoas, mas que não conhece sequer a si própria; um policial com o poder de prender a todos, mas que cai preso na própria armadilha do amor; tortas de blueberry que nunca são comidas porque todos preferem as de outros sabores, mas que, mesmo assim, stodos os dias são feitas e rejeitadas, num insistente círculo vicioso.
o trabalho da direção junto à fotografia proporciona quadros belíssimos para os olhos do espectador. o fotógrafo iraniano Darius Khondji optou por imagens granuladas e cores saturadas, onde predomina o vermelho, o amarelo e o verde, além dos letreiros de neon com suas cores extravagantes. há também a presença profusa de closes aproximando os rostos, deixando o fundo desfocado e valorizando a força de expressão dos personagens na tela.
tudo isso regado à trilha sonora planejada pelo compositor Ry Cooder, que inclui, além de Norah Jones - que nos oferece sua voz desde o primeiro quadro do filme, com a canção The Story -, melodias nostálgicas de Otis Redding, Try a little tenderness, e Cat Power com a canção The Greatest. aliás, esta última, faz uma ponta como a ex-namorada de Jeremy. na trilha musical há também uma citação ao filme Amor à Flor da Pele na cena em que a personagem de Norah Jones deixa Nova Iorque depois de sua desilusão amorosa: a música Yumeji's Theme, de Shigeru Umebayashi, toca e faz referência ao Kar Wai do passado.
o tempo parece ser fator fundamental no cinema de Wong Kar Wai. seus planos são constantemente alterados com o uso do slow ou através da aceleração da velocidade das imagens. às vezes chega até incomodar este uso excessivo da técnica, mas acaba por imprimir um estilo todo particular da direção. estas modificações podem remeter à passagem de tempo dentro na narrativa. a trama se estrutura episodicamente e à medida que leva a personagem a participar e assistir as várias histórias de amor, de rompimentos, de reencontros, de descobertas e de sobrevivência ou de morte, com vários planos de sobre-exposição, de cores, de sentidos, de pequenas quebras na narrativa em uma interessante dedicação para contar histórias detalhadas e delicadas, se transforma em uma interessante narrativa cinematográfica, que mesmo sendo um tanto quanto linear, reveste-se de algumas quebras na sua estrutura (uso de inserts, flash backs, etc).
o assunto deste filme é simplesmente o amor e suas várias faces. o romance fala de encontros, paixões, sentimentos contraditórios e toda sorte de motivos que movem a vida de cada um dos personagens, numa história profundamente visual sobre amores perdidos e encontrados. nestas noites de blueberry há espaço para descobertas, buscas e amadurecimento - e um dos mais belos beijos do cinema.
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